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Jefferson Nepomuceno

SANDRO, cerne e casca.
01 de agosto 2021

 

            O que a casca me diz a respeito da árvore. o que a árvore me diz a respeito do bosque. O que o bosque (...) me diz. (...) Sempre tudo na superfície e por superfícies entremeadas. Superfícies técnicas para testemunhar apenas a superfície das coisas. O que isso me diz a respeito do fundo, o que isso atinge no fundo? (...) Mas nem todas as imagens permanecem inócuas e não partilhadas. Há imagens que são atos coletivos, e não simples troféus privados. Há superfícies que transformam o fundo das coisas ao redor. Os filósofos da ideia pura, os místicos do tabernáculo não pensam a superfície senão como uma maquiagem, uma mentira: o que esconde a essência verdadeira das coisas. Aparência contra essência ou semelhança contra substância, em suma. Podemos pensar, ao contrário, que a substância decretada para além das superfícies não passa de um embuste metafísico. Podemos pensar que a superfície é o que cai das coisas: que advém diretamente delas, o que se separa delas, delas procedendo, portanto. E que delas se separa para vir rastejando até nós, até a nossa vista, como retalhos de uma casca de árvore. Por menos que aceitemos nos abaixar para recolher alguns pedaços.[1]

Um homem morreu. Um amigo morreu. Um espelho ruiu. Um combatente de quarenta e um anos tombou na maior crise sanitária do mundo. Tudo que se seguir nesse breve texto, não será além destas frases. Quando morre um amigo não ficamos tristes. Não ficamos desesperados. Não ficamos. Quando um espelho, de fato se vai, parte de nós vai também. Porque em parte éramos o que diacronicamente esse reflexo se construiu em nós. Quando ele parte, ficamos com uma ausência dura. Tão doída que não dói. Alguém que te ajuda a processar quem você é não pode ter o preço de um instante. E não tem. Têm o instante do perene. Do tanto da construção de quem se é. A morte do exemplo é amputação. Nenhuma economia de dureza.

Dia 1 de Abril morreu Sandro Lopes, uma das meio milhão de pessoas ceifadas pelo COVID-19.  Sandro tinha minha idade, colega de docência na Rural. Sandro incorpora tantas representações simbólicas presentes nas narrativas sociais que é uma linha lisa descritiva com enredo redondo, porém quebrado, ao menos em parte. Menino negro da baixada, de Nilópolis, que sempre quis ser desenhista, ilustrador. Inconformado em não se ver representado em nada. Tornou-se. Tornou-se de tal forma que reluz  e faz eco do seu trabalho. Como parceiro de aulas pude ver o efeito do exemplo deste homem negro ter por vezes mais ouvintes que alunos inscritos. Ser exemplo gerou identificação em Sandro por tantos jovens presentes na universidade preta que a UFRRJ é. Ver um professor negro faz diferença pros meninxs, eu vi. Negro, baixada, ilustrador, inconformado, professor efetivo de uma Federal que peitou uma imagética colonial e fez algo novo. Era então possível ser negro, de fato negro na universidade. Sandro é o pé na porta efetivo que tantos queriam ver, e viram um destemido que abre a trilha.

Incomodado com a ausência negra no campo, seja na labuta, seja na imagética, foi então ser. Tornou-se o animador negro que se pretendia, foi elaborar e fazer a imagética representativa até então ausente da cultura afro. Junto com Renato Nogueira e Cristiane Pereira, em 2010 criou a animação Nana e Nilo. Um casal de gêmeos negros que junto com a árvore Mulembe trazem às crianças um imaginário inédito, o espelho de serem negros protagonistas . Criadores negros, personagens negros, causas da cultura de ancestralidade negra, pela primeira vez voz prioritária narrativa num espaço comunicativo infantil. Era, é possivel ser negro com voz narrativa. Nana e Nilo continua a ganhar prêmios e a ser mesa de debates. Mais: é espelho para outros meninos pretos da baixada que não se viam representados como produtores e antes, num imaginário.

A forma que Sandro partiu é tão significativa quanto dura. Seu pai contraiu covid e ele começou uma epopeia na busca por leito. Tendo conseguido, contraiu o vírus. Em casa seu quadro agravou. Sem leito para si, só conseguiu atendimento quando cinquenta por cento de seus pulmões já estavam tomados e teve complicações. Sandro partiu. Sandro partiu ainda antes de seu pai, que veio a fazer a passagem dias depois. Essa descrição seguramente é eco de nosso tempo. Um tempo duro, agudo, escaleno. Ainda abrumado de fim, desse tempo temos algumas leituras, e em Sandro algumas percepções de cronos nesse personagem.

Sempre me chamou atenção a poesia em que toda cultura africana, e consequente a afrodescendente se põe. Das falas iorubá, Bantu, Fon, tem no elemento árvore um elemento narrativo central. A árvore não está, ela é. Por ser uma presença tão eloquente, o pensamento sobre a árvore é perene em inquietação. Existe uma eternidade na presença diante dos ventos geracionais.

Em Cascas (2017), Huberman nos fala sobre uma correlação que interessa à leitura: “A casca não é menos verdadeira que o tronco. É inclusive pela casca que a árvore, se me atrevo a dizer, se exprime”( p. 132). Haverá na cultura matriz um locus,  origem,  e em Sandro, um locus processual. Não obstante, se a cultura matriz, por seu regime de interpretação, pode ser considerada como fonte aberta, numa vista inquieta a essa matriz, este seria o ponto de encontro dos diversos percursos práticos que se estruturam em torno dela. Ambos, origem e processo podem ser descritos, respectivamente, como casca e árvore a um só tempo. Cultura matriz e seu processo vivo se relacionam em troca de forças numa atualização de vida de forma motriz perene. Sandro, Nana, Nilo, Mulemba atualiza a cultura na mesma medida que se alimentaram.

Salve Sandro, perene. Por quanto tempo o tempo deixa de ser vulnerável? Por quanto tempo o tempo deixa de ser imensurável? Por quanto tempo o tempo será insuportável? Por quanto tempo o tempo se postará escaleno, será sempre unilateral?. Do ponteiro antipático. Do tempo frio. Do ar de pressa. Do vento que cessa  a razão da poesia de momentos insondáveis. Pára, tempo. Pára que eu quero falar. Me deixe gaguejar. Pára. Na enstância quero poder esperar a utopia e caminhar mesmo cláudico. Quero olhar a gaivota sem que o azul se apresse a purpurar. Pára, tempo. Que eu não quero parar. Sigamos que é tempo rubro político. Salve Sandro Lopes, presente.

 

 

 

 

 

Referências bibliográficas:           

 

[1]  HUBERMAM, Didi Georges. CASCAS. Minas Gerais: UFMG, 2017

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