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EXPOSIÇÃO

Conversa por e-mail iniciada em 02/11/2020


Alexandre Sá: Como surge a escolha do tema nos seus trabalhos atuais?

 

Hernani Guimarães: Comecei esses trabalhos coletando imagens que me atraiam, comecei fazendo algo que era só pra mim. Depois refleti que as representações homoeróticas são raras no contexto geral. Você vê filmes, novelas ou ouve músicas que quase sempre são representações heterossexuais que acabam apresentando um caráter de norma. Essas imagens homoeróticas acabam reivindicando o direito à ser representado, à ter visibilidade, à subverter a heterossexualidade como norma como representação única da sexualidade humana. Isso me motivou a desenvolver essa série.

AS: Mas você de fato acha que as representações homoeróticas são raras hoje em dia considerando o universo da cultura visual?

HG: Sim, elas são relativamente minoritárias e têm circulação restrita, guetificada, em bolhas. Estão à margem da cultura visual. Quando saem do gueto às vezes criam escândalo como o caso recente da ilustração de um super herói bissexual beijando outro homem. Já vivenciei restrições para exibição de imagens gays em exposições de arte. Em números absolutos podem ser que sejam poucas, mas têm dificuldades de circular de forma ampla e de serem exibidas com normalidade.

 

AS: É engraçado porque eu acho que realmente são coisas diferentes. A crise provocada pelo casal gay se beijando atende uma demanda de polêmica que escapa ao processo de representação na cultura visual. Em certo sentido, eu acho que esse caso representa um símbolo a ser atacado. Mas pensando o que tais imagens, inclusive as suas, trazem de erótico, não sei se isso causa tanto estranhamento. Lógico que é mais uma sensação que uma real comprovação, mas tenho eventualmente a impressão que o universo gay, aliado ao pop, é algo eventualmente difundido e consideravelmente desejado, inclusive pelo mercado. Mas pensando mais especificamente sobre seu trabalho, o mote erótico é estruturado de qual maneira?

 

HG: As imagens definem territórios, principalmente as imagens de sexualidade e afetividade numa cultura tão normativa. Cada tipo de imagem tem seus territórios de circulação e quando escapam desses lugares ou alcançam novos isso pode gerar algum conflito. A imagem de dois homens se beijando é corriqueiro para um certo público ou um certo mercado. Quando aparecem numa publicação de super-heróis voltada para o público infanto-juvenil isso gera algum conflito. Era disso que eu estava falando. Eu concordo que essa polêmica, esse caso específico é mais um factóide dos fundamentalistas religiosos, mas quando você pensa nas pessoas que na internet compartilhavam escandalizadas a imagem, tem a ver com essas disputas de territórios que acontecem através da imagem. 

As redes de circulação de imagens e mercadoria são feitas de diversas vias que se cruzam ou vias paralelas que nunca se comunicam. O estranhamento tem a ver com essas territorializações. As imagens gays circulam dentro do gueto gay como a mais perfeita banalidade, fora dele contém um potencial de subverter as narrativas heterormativas totalitárias da sexualidade e dos costumes. Elas podem causar reações de repulsão ou atração, de familiaridade ou surpresa, dependendo de cada indivíduo que entra em contato com ela...

No meu trabalho essas imagens são primeiramente resíduos de uma cultura visual impressa em material pornográfico que circula em redes sociais, cujos algoritmos são capazes de conhecer seus interesses e disponibilizar conteúdos a partir disso. Elas contém a possibilidade de visualização de atrações sexuais e afetivas que são coisas da ordem do invisível. Isso me interessa: o que esses resíduos culturais podem revelar. E depois quando viram desenhos circulam em outros circuitos como o da arte, trazendo esses universos subterrâneos para outros territórios.

Não gosto do termo erótico, pois ele é muito usado de forma hierarquizada em relação ao pornográfico colocado como sujo, vulgar, etc... Contém certo moralismo, preconceito e tal. Prefiro dizer que essas imagens são soft porn, ou pornografia leve, para usar os termos do mercado pornográfico que definem onde essas imagens irão circular.

 

AS: Mas o erótico seria hierarquizado, caso não considerássemos Bataille, Lacan ou Foucault por exemplo, não? 

 

Quando você fala do soft porn, eu sinto como uma vibração inevitável de um processo de coisificação do desejo que, embora abra oportunidades para as pessoas ganharem grana em sites como onlyfans, xtube e tals, termina deixando tudo muito flat. Você não acha?

 

O que termina me provocando uma sensação de paradoxo: como pensar em pseudo-marginalidade-discursiva adotando padrões (físicos, comportamentais, éticos e afetivos) que replicam um regime semântico e simbólico de poder que é inevitavelmente colonizador no sentido de estabelecer-se como regra?

 

Mas quando eu perguntei especificamente sobre a sua produção, é porque eu acho que há uma metodologia interessante em termos gráficos que é a tentativa de extrato, de síntese, de resto e de memória, no sentido de revirar em parte, o imaginário cotidiano de tais corpos, inclusive no que se refere ao volume; seja lá o que isso for.

 

HG: Essa hierarquização entre erótico e pornográfico se dá mais no plano do senso comum, mesmo que a gente a veja em lugares como a academia e instituições de arte. Mas isso talvez seja um falso problema. Prefiro o termo pornografia pois tenho me aproximado mais dos Porn Studies, da pós pornografia do que da psicanálise ou do eros mitológico.

 

Nessa perspectiva trata-se de entender a pornografia e tomar o controle desses tipos de dispositivos e ver o q eles podem fazer por nós. Não se trata de reproduzir a pornografia. 

A pornografia corre como um rio subterrâneo que acaba contaminando toda a cultura visual e a cultura no geral. Tirar ela desse lugar subterrâneo encontra a resistência dos puritanos, moralistas, cristãos, fóbicos, etc. É um território ainda politicamente delicado, mesmo que essas incursões da arte no universo da porgrafia tenha acontecido desde a década de sessenta. 

Mas é preciso atentar pra esses fenômenos localizados mais no baixo ventre que no encéfalo. Eles também nos constituem. 

 

AS: Sim claro, mas e sobre seu trabalho?

 

HG: Estou aqui falando sobre meu trabalho o tempo todo. 

 

AS: Pois é… mas eu sinto falta de um debate mais específico sobre a produção. Porque o debate eventualmente fica bem amplo. Acho que existem questões que são importantes. Como por exemplo a síntese da imagem (como eu comentei anteriormente), a materialidade do trabalho, a difusa relação com o processo objetual, etc…

 

HG: Ah sim, às vezes eu me empolgo com as reflexões sociológicas e filosóficas, o que faz parte do processo também.

 

Nessa série bestiário eu experimento novos materiais para o desenho. Tudo desemboca no desenho. Tenho pensado muito no desenho como esqueleto, como estrutura. A ideia de esqueleto se liga com essa ideia de resto e de vestígio que você falou. 

 

Meu desenho tenta captar algo fundamental da imagem, algo que forma a figura. 

 

Gosto da figura, do clichê também. Trata-se de tentar entender o clichê e não reproduzi-lo. 

 

Mas o desenho tem suas próprias necessidades.

 

Meu braço exercita movimentos que mostram coisas que pra mim eram inconscientes.

 

O que me liga de alguma forma a algumas práticas do surrealismo.

Mas essa síntese pra mim também traz o q há de mistério na imagem, o que continua dentro da linguagem gráfica, aporia para linguagem verbal.

 

Gosto de algo fora do verbalizavel, não sei se consigo.

 

Sobre o material, sempre causa muita curiosidade. Uso plástico descartável, de embalagens, de sacolas.. 

Muita gente vê nesse gesto um desdém com os materiais consagrados como materiais de arte. Mas isso é bobagem. Entendido que não existe nenhuma neutralidade em nada. Busquei outra superfície pra materializar meus desenhos. 

 

Gosto do plástico por ser muito durável, ser muito cotidiano e não ser nada nobre pelo menos nessa cultura do desperdício que vivemos  O plástico é um material nobre e bastante durável. 

Mas esses plásticos são matérias que se acumulam na mesa do meu ateliê. Coleciono matérias da mesma forma que coleciono imagens digitais.

 

Nessa série esses dois colecionismos se fundem, não sei explicar porque, mas achei que ficaria bem esses desenhos vindos dessas imagens nesses plásticos. Esse material se torna um plano mole, com leve volume e movimento, com variáveis níveis de transparência, que revelando o que tem atrás que pode vir a construir outras sobreposições. Chamam atenção pra superfície, se ligam ao imaginário da membrana, da pele e da indústria. 

Sempre acho que falta muita coisa pra falar que acho que estão nas imagens, as imagens falam muito. 

 

Mas o que eu falei acima tem a ver com a série bestiário. Tem também os autorretratos q são outra história. Neles estou no meu lugar de conforto. A técnica de nanquim que eu mais domino.

Ela não parte de uma superfície branca mas de uma superfície estampada, que muitas vezes foi taxada de mal gosto, que faz parte desse universo do comércio popular do descartável.

 

Mas esse choque entre a superfície já desenhada e o desenho em nanquim é suave e deixa tudo mais interessante. Mas simplesmente se trata de um desenho de autorretrato.

Muita gente me pergunta sobre o desenho, parece assim uma linguagem morrendo, cujas as chaves de leitura não estão circulando tanto por aí. 

Mas sigo desenhando e pra mim é uma linguagem ultra viva.

Aliás desenho e vida se ligam fortemente uma vez que desenho vem do corpo, é ímã. Linguagem corporal presente em tantas coisas. Tudo que a indústria produz por exemplo um dia foi desenho na mesa de um design industrial, etc... 

 

AS: Então, para finalizar eu gostaria de abordar exatamente essa questão.

Você é um artista com uma formação bastante sólida, inclusive sobre técnicas de desenho.

E tem desenvolvido um trabalho que mescla isso com a possibilidade gráfica do trabalho em um ambiente virtual. Acho que é exatamente por isso que propus essa exposição.

Como você pensa esse entrecruzamento?

 

HG: O ambiente virtual é dominado pela fotografia e suas velhas concepções de evidência e testemunho, por mais que a arte, por exemplo, já tenha desconstruído essas noções.

Nossos olhos parecem estar viciados a um tipo de fotografia, sua espacialidade determinada pelas lentes, sua instantaneidade, sua imaterialidade digital, etc...

O desenho propõe outro olhar, um olhar mais lento guiado pelas linhas, a possibilidade de outra espacial idade e sensorialidade dada pela sua materialidade e rastros dos gestos da mão. 

Meus desenhos partem de fotografias e propõe ver de novo o que já foi visto, de outra maneira. Aprendi com artistas como Magritte a ver a estranheza das coisas familiares e que a imagem é um mundo à parte independente da realidade, que porém tenta persegui-la. 

A imagem pra mim permanece um mistério, é essa abordagem que eu tento trazer nesses trabalhos.

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